O Perigo é a Minha Profissão

Isto é Brasil:


Veja cenas de perigo e imprudência 
nas linhas de comboio



Veja o vídeo mais em baixo...


Depois de uma série de acidentes com trens, em São Paulo, as nossas equipas percorreram o Brasil para mostrar os perigos que rondam as ferrovias. 

Há de tudo: comboios que passam no meio da favela, cruzamentos sem sinalização, cancelas rebentadas... E muita, mas muita gente imprudente. 

A buzina toca insistentemente. Mesmo assim, as pessoas se arriscam. E isso acontece em várias cidades do Brasil.

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Vídeo:

Deverei dizer: parece piada de brasileiro?



Reportagem do Fantástico:

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Em Maceió, são mais de 300 toneladas vindo na direção de carros, motos e bicicletas. 

Mas é como se o trem não existisse. Todo mundo passa tranquilamente pelo cruzamento. 

Até que, em cima da hora, o motorista de um carro percebe que não vai dar tempo e dá marcha a ré. 

Outro flagrante de alto risco. Agora, no Guarujá, litoral de São Paulo. O trem está quase chegando, mas o caminhão se arrisca e passa bem na frente. Pensa que terminou? Outro caminhão vai por onde não deveria. 

Ao longo de três semanas, as equipes do Fantástico percorreram cinco estados brasileiros e constataram: o perigo ronda as linhas de trem. 

“Desde o momento que a gente anda no trilho, a gente tá pagando pra ver, não é não?”, afirma Valdete da Silva, dona de casa. 

“Já atropelou uma moça. Era pra ter feito uma passarela aqui, não fizeram ainda”, diz Severina Alves Ribeiro, dona de casa. 

Um perigo que afeta diretamente milhares de brasileiros. Inclusive quem não anda de trem. Conhecemos essa realidade bem de perto. 

“Olha só a distância. É impressionante, é muito próximo mesmo”, diz o repórter Mauricio Ferraz, espremido entre o trem e a parede. 

Pra garantir a segurança perto da linha, existe uma lei federal. Ela determina que, de cada lado dos trilhos, exista uma faixa livre, de pelo menos 15 metros. 

Mas, numa favela do Guarujá, litoral paulista, os vagões passam quase colados aos barracos. A linha do trem virou ponto de encontro e de diversão. 

Os meninos só param de brincar quando o trem já está muito próximo. 

“E buzinar, sino, atenção, a mão no freio constante. É tenso porque, além de ter muitos barracos próximos, tem meliantes que às vezes ameaçam, jogam pedra, então as equipes passam com atenção maior”, observa José Luiz da Silva, inspetor ferroviário. 

A favela é grande, tem cerca de 1.800 famílias, fica no caminho para o porto de Santos, o maior da América Latina. A previsão é que a retirada de parte dos moradores comece ano que vem. 

“Não dá pra conviver um trem de carga com uma tonelagem de 4 mil toneladas, com população a um metro de distância. A gente tem que resolver esse problema” afirma Jose Roberto Lourenço, gerente de relações institucionais da ferrovia. 

A malha ferroviária brasileira tem 28 mil quilômetros. Nos cruzamentos, as chamadas passagens de nível, é raro haver todos os equipamentos de segurança: placas, sinais sonoros e cancelas. 

Pra mostrar o problema da maneira mais próxima possível, instalamos uma câmera na frente de um trem. Ele passa pela Favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio de Janeiro. Há muito lixo e a sensação é de que, a qualquer momento, alguém pode cruzar a linha. 

“As casas eram a menos de meio metro da linha, nós construímos esses muros de concreto. Nós temos que reduzir cada vez mais a velocidade nessa área. Mas o problema é o uso constante das drogas, é um problema seriíssimo, problema de segurança pública, um problema social que a ferrovia não tem condições de atuar”, garante Sérgio Henrique Carrato, gerente da ferrovia. 

Segundo a Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários, existem hoje no Brasil 372 áreas onde a lei não é respeitada e as construções ficam a menos de 15 metros da linha. No Ceará, encontramos uma situação perigosa e inusitada. 

Num bar em Fortaleza, a especialidade é camarão e muito samba. Mas o que chama a atenção do local é a localização. Fica ao lado da linha férrea. 

“O trem passa pertinho aqui da gente, você já pensou se ele descarrila”, observa Alex Saldanha, empresário. 

A cena se repete todas as noites. “Está bebendo num bar e o trem passando, cheio de garotos em cima, maior perigo”, conta o empresário Marcos Aurélio Mastrangeli. 

E pode acreditar. Em outra capital do Nordeste, o perigo passa mais perto ainda das pessoas. 

No Centro da cidade, uma feira funciona bem em cima da linha férrea. Os ambulantes nem tiram as mercadorias do trilho. O trem passa oito vezes por dia pela feira. 

“É perigoso. Brincou, morreu aqui”, afirma Isaias José da Silva. 

E dentro do trem? Como os passageiros e o maquinista encaram uma situação dessas? 

Embarcamos num trem que nem porta tinha. 

Fantástico - Você não tem medo de andar por aqui não? 
Homem - Rapaz, medo tem. Medo tem. Mas tem que andar mesmo, de qualquer jeito. 

Ao passar pela feira, o maquinista tem cuidado redobrado. 

A velocidade do trem não passa de cinco quilômetros por hora. Se fosse um trajeto normal, chegaria a 80 km/h. 

“Se um trem descarrilar naquela área ali, o número de vítimas com certeza vai ser muito grande”, afirma Mauro Nunes de Oliveira, gerente operacional da ferrovia. 

Ano que vem, os trens devem começam a ser substituídos por outros mais modernos e a feira de Maceió, transferida de lugar. 

Alguns ambulantes acham ruim: temem uma queda no faturamento. 

“É um absurdo a feira sair daqui porque tem muitas pessoas sobrevivendo da feira. Toda vida a gente viveu nesse perigo e nunca houve nada”, afirmou o comerciante José Carlos Cândido. 

Sexta-feira passada, um homem que estava sentado perto da linha, foi arrastado pela locomotiva e morreu. 

Nos últimos três anos, acidentes com o trem causaram nove mortes na região da feira. 

No Brasil, o caso mais grave de 2010 aconteceu em Americana, interior de São Paulo. 

O Fantástico teve acesso a informações da perícia e do computador de bordo do trem, que carregava 8 mil toneladas de grãos, em 81 vagões. 

Eram 11h15 da noite. Quando o trem estava a três quilômetros do cruzamento com uma rua, o maquinista começou a reduzir a velocidade de 50 para 20 quilômetros por hora. Uma medida rotineira, de precaução.

Em depoimento, o maquinista disse que avisou, por rádio, o funcionário da ferrovia que fica no cruzamento para ligar o sinal sonoro e as luzes de alerta. No local, não há cancela. 

O maquinista conta que, a 400 metros, acionou a buzina do trem e que, a 25 metros do cruzamento, tomou um susto: um ônibus apareceu no caminho. 

Ele puxou o freio de emergência, mas mesmo assim, foi impossível evitar a batida. 

O ônibus - com cerca de 30 passageiros - foi arrastado por 82 metros. Nove pessoas morreram. 

“O problema é que um trem demora pelo menos 500 metros para parar”, explica Angelo Cury Deves, superintendente de operações da ferrovia. 

Um dia depois do acidente, ainda no hospital, um rapaz contou que teve muita sorte. 

“Conforme o trem foi levando o ônibus, ele bateu no outro vagão que estava parado. Deu um impacto que me lançou pra fora do ônibus, quando me dei conta, eu estava debaixo do trem, que por sorte já tinha parado o movimento”, relembra o estudante Felipe Nunes. 

O motorista do ônibus tem 20 anos de profissão. Há cinco, fazia o mesmo trajeto. Alega que não teve culpa. Em nome dele, falou o advogado da empresa. 

“Quando ele tava no meio da linha férrea, tocou o sinal. Aí ele não teve tempo de tomar nenhuma providência. Tinha que tocar bem antes para parar antes da linha férrea”, explica Marco Antonio Dacorso, dvogado da empresa de ônibus. 

“O depoimento dele destoa totalmente do conjunto das provas. O motorista não teria respeitado esses sinais”, declara Claudinei Albino Xavier, delegado. 

O delegado que investiga o caso vai indiciar o motorista do ônibus por homicídio culposo, sem intenção de matar. 

“Faltou da parte dele cautela na hora de transportar esses passageiros”, afirma Claudiney. 

Outro maquinista trabalha na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com 23 anos de profissão, ele diz o que sentiu quando atropelou uma pessoa. 

“A gente para e reflete, no interior da gente: ‘Será que eu fiz tudo pra ter evitado esse acidente? A gente fica de consciência um pouco limpa. o que a gente poderia ter feito, a gente fez”, conta Geraldo Magela Matos. 

Nossas equipes constataram outro problema também: a falta de sinalização. Na Região Metropolitana de belo horizonte, por exemplo, vândalos destruíram quatro cancelas. 

Em Maceió, encontramos mais problemas. O cruzamento não tem cancela. Os carros passam tranquilamente. O sinal sonoro não funciona. O que identifica que o trem está passando é a buzina. Mas, às vezes, com tanta movimentação de veículos, é difícil escutar o som. Só quando vai chegando mais próximo. Aí sim é possível ouvir o barulho da buzina. Mesmo assim, os carros param muito próximos e alguns continuam passando. 

Em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, encontramos Dona Iraci. Ela, o marido e a filha estavam de carro e sobreviveram a um acidente. 

“Eu não vi o sinal batendo. Foi muito triste, muito triste mesmo. Já morreu muita gente atropelada nessa linha”, Iraci Soares, dona de casa. 

“Realmente necessitamos aqui um viaduto não é nem pra hoje, nem pra amanhã, era pra ontem”, afirma Elisângela da Costa, estudante. 

Mas o que fazer? Como tornar mais seguras as viagens de trens? Um problema que como a gente viu afeta diretamente o cotidiano das pequenas e das grandes cidades brasileiras. 

Em Americana, onde nove pessoas morreram no mês passado, a prefeitura decidiu: “A única forma de solucionar o problema é a retirada dos trilhos da área central. Retirar do perímetro urbano e colocar no contorno da cidade, próximo à rodovia”, explica Jesuel Freitas, secretário de Transportes de Americana. 

A lei determina que as passagens de nível devem ser eliminadas aos poucos. 

Um professor de engenharia de transporte explica o que deveria ser feito no lugar. 

“O ideal é simplesmente acabar com elas. Essa travessia não deve ser em nível. Deve ser em níveis diferentes. Ou uma ponte ou uma passagem inferior, subterrânea”, afirma Hostilio Ratton Neto, professor de engenharia-UFRJ. 

Para os especialistas em transporte ferroviário, as pessoas também precisam ficar atentas e prestar mais atenção no aviso dos maquinistas. 

“Não arrisca não, porque não está na mão do maquinista. Muitas vezes, pode pagar com a própria vida”, alerta Geraldo Magela Matos, maquinista.



Fonte: Fantástico.globo.com